domingo, 23 de setembro de 2007

Lágrimas no escuro

Duas semanas após ter visto o lindo drama russo O pequeno italiano, levo um verdadeiro soco no estômago ao ver Querô. O tema é o mesmo: o abandono. Mas os filmes têm realidades e modos muito distintos de lidar com o assunto. Se em O pequeno italiano o personagem (e a platéia) pode transitar entre dois universos, o da esperança e o da desesperança, Querô angustia pela percepção que imediatamente transmite, de que qualquer tentativa de fuga do personagem daquela realidade será infrutífera. Baseado na obra de Plínio Marcos, Querô é um menino órfão de uma prostituta suicida que sobrevive como pode nas ruas da cidade. O filme de Carlos Cortez remete ao inesquecível Pixote, a lei do mais fraco, de Hector Babenco, e para quem viu os dois, a constatação é desoladora: nada mudou daqueles anos 80 para cá.

Todos nós conhecemos Querô e é esta intimidade que é inquietante. O filme tem sem dúvida um caráter documental. Somos vítimas destas vítimas. Todos já escutamos ou estivemos em histórias de assaltos pelos famigerados “pivetes”. Entretanto, ao longo da trama, é impossível se escapar à dolorosa conclusão de que eles são tão mais vítimas do que nós. Vítimas da sociedade, de um sistema econômico excludente, vítimas de si mesmos e de sua própria impotência frente a um mundo que começam a conhecer e que tão poucas ilusões oferece. Isto não é discurso de esquerda e nem equivale dizer que todo bandido é sociologicamente justificado, mas menores que ainda não tiveram sua identidade totalmente forjada, ou melhor, que a tem pelo que apreendem do submundo não podem ser culpados por seus atos. Querô (apelido das ruas) quer ser Jerônimo (seu nome de fato), mas a realidade não dá tréguas. É o embate travado entre ser o que a sociedade impõe e estigmatiza e alguém melhor e além de sua condição social. Que alternativas o sistema oferece, afinal? Querô vai para a FEBEM e lá é brutalmente estuprado. O que seria uma chance de recuperação para o personagem neste momento? Li uma entrevista em que o diretor condena a questão da maioridade penal, pois seria como desistir destes meninos sem tentar. Querô ainda é capaz de amar e quando vê Lica (a garotinha por quem ele se apaixona) cantando como um anjo na igreja, em um momento de pureza e sonho para o personagem, a vontade de ser Jerônimo fala alto. Mas ser alguém sozinho é muito difícil.

É complicado para nós, classe-média, entendermos o que é este universo e perdoar quando uma pessoa de nosso convívio é assaltada de forma covarde. Mas o fato é que só se é capaz de sentir aquilo que conhecemos. Se amor, carinho, consideração e coisas tão primitivas como um teto, uma refeição nos é negado, o que resta é a revolta. “Raiva a gente não pede, a gente ganha”, nas palavras do próprio Querô. Aplausos para o diretor e sua câmera nervosa que divide a dor do personagem conosco e nos transporta para suas lembranças. A cena de estupro, que só será evocada através de curtos e confusos flashbacks, demarca a sensibilidade de Carlos Cortez. O escuro e o silêncio mostram tudo sem precisar mostrar nada.

E que um dia seja permitido aos Querôs serem Jerônimos. E para a platéia fica a mensagem da placa da estação de trem que aparece momentaneamente no filme, mas de maneira muito oportuna e subliminar: “pare, olhe, escute”.

Um comentário:

Elis Bartonelli disse...

JOana!
Po, mto legal seu post!Quero ver esse filme...
seja bem-vinda!
beijos