sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Eu e a Mola

Fui convidado para trabalhar em um congresso de medicina. Na verdade, eu não fui convidado, mas me encaixei em uma das muitas funções inúteis das quais ele necessita, por ser amigo do filho da presidente do laboratório que o organizava (ou seja, nenhum mérito, só contatos). Meu objetivo com isso, logicamente, não era contribuir para o melhor funcionamento do evento, mas sim ganhar uma grana e patrocinar um padrão de vida alto por uns tempos – antes de voltar com tudo para a pindaíba da vida universitária.

A caminho do congresso, fui pensando em que seria utilizado. Eu nunca tinha trabalhado naquilo na vida, seria tudo novidade. Será que tentariam me encaixar numa área de informática para aproveitar as minhas aulas sobre o assunto? Quem sabe eu não iria ter que usar meu inglês e francês tão enferrujados? Não foi nada disso. Eu me considero uma pessoa de capacidades intelectuais acima da média, mas a tarefa da qual eu fiquei responsável não queria nem saber da minha formação: a mim cabia ser porteiro de uma sala, garantindo que cada congressista só entraria nela com um crachá, e que a porta seria fechada após a passagem de cada participante.

Achei a tarefa fácil, e realmente ela era bem simples. Mas acreditem: eu falhei. Nunca fui adepto do cumprimento das leis e regras tais como elas são estabelecidas. Carioca da gema e brasileiro com muito orgulho, sou daqueles que acham que tudo deve ser flexibilizado, que não há nada para o que não haja um “jeitinho”. Assim, eu ficava com pena de barrar as pobres criaturinhas que se esqueciam de pendurar sua identificação no pescoço. Eu não conseguia ser honesto o suficiente para cumprir a lei. Pensava na trabalheira que seria pedi-las para parar, explicar educadamente por que as interrompia e fazê-las pegar o crachá em suas bolsas.

Entretanto, para não me considerar um corrupto incorrigível, resolvi flexibilizar o critério de identificação. Junto do crachá, as pessoas recebiam também uma maleta verde. Portanto, mesmo que o indivíduo não tivesse a identificação no pescoço, poderia entrar se portasse a maleta.

Sim, eu falhei de novo. De cada cinqüenta pessoas que entravam, uma pelo menos não tinha nem maleta nem crachá, mas eu continuava com pena de interferir no seu trajeto. Vendo que eu definitivamente não tinha nascido para cobrar o cumprimento das leis, desisti, resolvi liberar geral. Agora entrava na sala quem quisesse, tinha virado festa. Até a regra 1.1 – não deixar que crianças entrassem – eu desrespeitei quando vi a linda cena de uma garotinha inocente adentrando a sala de mãos dadas com a sua mãe.

Mas eu ainda não queria me ver como um completo inútil. Então, resolvi me concentrar na segunda tarefa: não permitir que a porta ficasse aberta.

Finalmente, o sucesso!!! Era só alguém entrar ou sair da sala sem fechar a porta que, como um raio, eu ia fechá-la. Virei o melhor porteiro do evento. Tá certo que até uma pessoa cheia de bombas, com cara de psicopata e sem crachá entraria na sala, mas com certeza a porta seria rapidamente fechada logo após.

Pensando bem, eu já não sabia se isso era sucesso ou fracasso. Eu nunca fui muito de trabalhar, mas como todo jovem, sempre sonhei que seria um grande estrondo na minha carreira. Agora, no primeiro emprego, estava ali como um fechador de portas. O que diria a minha mãe que gastou rios de dinheiro na minha educação? Saber línguas como inglês e francês; conhecer pensadores como Montesquieu, Marx e Weber; entender inutilidades, como por que a vaca produz leite e o gelo afunda na água, enfim, qualquer coisa que me havia sido ensinada nos últimos 15 anos era inútil quando o foco estava em empurrar uma porta. Resolvi parar de pensar e voltar a me concentrar na minha pseudo-utlidade para não ficar deprimido.

Foi então que notei a minha macabra semelhança com uma mola. Eu estava fazendo exatamente o serviço dela. Pensando melhor, agora eu era completamente descartável. Uma mola faz o meu serviço e não come, não tem sede, não tem sono, não é corruptível e nunca dá eventuais saidinhas para ir comer o amendoim dado de brinde nas barraquinhas ao lado. O pior de tudo é que eu custava 150 reais por dia, a mola, dois reais na esquina. Sinceramente, eu me despediria.

Fiquei aflito, meu primeiro emprego estava em perigo. Havia virado um simples homem-mola. Se a minha chefe me notasse, certamente me demitiria e colocaria uma mola na porta. Seria triste eu voltar para casa mais cedo e decepcionar todos aqueles que acreditavam no meu potencial. Não podia continuar assim. Teria que me diversificar se quisesse durar na profissão de tapa-buraco de congresso. Rumo aos crachás de novo! e seja o que Deus quiser.

Um comentário:

Isadora Marinho disse...

MUITO BOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOMMMMMMMM!!!!!!

Cara, ri muito. Genial.